Chegou a noite dos jantares de Natal, ou melhor "jantaradas", não há restaurante que se preze que não apresente as suas mais sumptuosas ementas com requintadíssimos menus cheios de floreados que não servem para mais do que chular os mais incautos: aperitivos, dois ou três pratos principais (carne, peixe e bacalhau), sobremesas e copos, muitos copos para esvaziar.
A rua inundada de carros mal estacionados marca o local, a desbunda começa ali, eles com fatos impregnados de um refinado perfume a naftalina e gravatas de nó esgalhado, elas quase a tombar dos saltos altos e “altas” mini-minissaias que até poderiam provocar qualquer coisa mas na realidade não ousam nada. Abrem-se as hostilidades com os primeiros drinks a acompanhar as amostras grátis de rissóis e pasteis de arroz que fazem de entradas, «couvert, mé bian siur! que m’ensinou o meu primo imigrante na França!».
Embala-se a seguir no prato principal a tradicional troca de prendas do amigo (in)visível, o exotismo das oferendas serve de mote a mais cargas etílicas, para aquecer os ânimos e amorfar um manjar onde se investiu “couro e cabelo”, e onde todas as mentes entraram cheias de coragem e com o mesmo propósito: «É hoje, e de hoje não escapas, vais ver!»
Empanturrados e encharcados, tanto que até já se dizem algumas verdades azedas, chega-se aos doces da sobremesa com a barriga cheia e quase com o “caldo entornado”. A noite corre, a amena cavaqueira abranda, os assuntos esgotam-se os argumentos esvaziaram-se, e esfumam-se as expectativas, empurra-se a conta com café e brandy (fica mal pedir uma “borradinha”).
Prepara-se o segundo round, a visita guiada a um estabelecimento nocturno da especialidade, dependendo do ímpeto pode até ser o mato mais próximo, para aliviar os excessos, claro! O ar fresco aviva a consciência: «ai se m’aparecem os cucos…», e aqui desistem os primeiros, quase todos!
Descrever o que sucede na fase seguinte da noite é um privilégio de alguns poucos, por isso passo a explicar, embora não haja muito a dizer, as cargas etílicas passam a ser mais fortes e intercaladas com bebidas de cápsula, volta a conversa, fala-se muito, fala-se demais, “abana-se o capacete”, e… «ora bolas não me lembro do resto».
Atingir a ultima fase da noite é um feito quase lendário onde se desconhecem os rostos dos intervenientes, pelo que por via das dúvidas se desconfia sempre daqueles que se gabam de o terem alcançado, diz-se que eles próprios contam histórias confusas sem se perceber exactamente o que se passou, apenas com uma certeza acabam (como todos os outros) a acordar no sítio do costume com a ressaca do ano.
Esta é uma noite de Natal em que nada lembra o espírito da época, tudo nesta noite é uma aparência aparente em que nem tudo é o que parece.