Nasceu!
Numa garagem abandonada, coberta de chapa de zinco,
E num caixote velho de latas de óleo,
Entre desperdícios sujos e usados.
Nossa Senhora e S. José tinham vindo pela estrada,
Os pés no asfalto negro, onde circulavam carros de luxo:
Pedir boleia, pediram, mas ninguém viu ou quis ver,
Ou escutar o gesto...
Iam apressados para a ceia da noite,
Desbragada como um conta-quilómetros
E cheia de neblina e de promessas.
Nasceu!
Num caixote velho de latas de óleo,
Entre desperdícios sujos e usados.
O clarão dos holofotes chamou lá os vadios de todas as noites:
Os guarda-nocturnos, os policias de giro,
Os que não têm cama para dormir,
Os poetas e os fugidos à Lei - TODOS! -
Todos os que naquela e nas outras noites
Não tem para onde ir, nem onde comer.
Foi, porém, o clarão dos holofotes gastos que os levou lá:
E viram, sobre os desperdícios sujos, num caixote velho,
O Redentor do Mundo,
Aquecido pelos dez cavalos-vapor de um velho Ford T
Que trabalhando, acordava a vida no arrabalde longínquo.
S. José e Nossa Senhora choravam:
Todos pediam no mundo a ressurreição de Cristo!
E Ele viera, Ele encarnava de novo
Através do ventre puríssimo da Virgem,
Sob a custódia lirial do descendente de David.
Os donos dos carros de luxo cortavam o nevoeiro
Comprometidos pelas amantes caras que ficavam para trás;
As camionetas de transporte temeram a polícia das estradas
E os outros todos também não quiseram dar boleia, Ao Filho de Deus!
Foi assim que Nossa Senhora veio num pé a pé cansado
Pela estrada fria e asfaltada
Que ganhara um concurso nacional de arranjo e de beleza!
Na cidade aonde chegaram pela noite adiante
Todos comiam e bebiam o símbolo dessa noite:
As autoridades locais tinham mesmo dado aos pobres
A esmola de uma ceia em cartolina...
Por isso todos estavam ausentes das ruas e dos lugares de costume,
Menos aquele motorista que odiava Deus
E que não tinha mulher, nem filhos
E que por esse motivo estava ali, na praça,
Para atender os fregueses transviados.
Para esse a gruta de Belém não dizia
«Gloria in excelsis Deo» mas «Gloria in excelsis Dollar»!
E tinha a alma carregada de odio, Embora o coração fosse bom,
Tão bom
Como se ele fosse o próprio Cordeiro Imolado.
E foi ele que indicou a garagem deserta,
Numa rua suja onde só ilhas humanas
Habitavam, viviam e continuavam.
Foi por isso que Jesus Menino nasceu outra vez entre os homens,
Naquele barracão de lata zincada,
Num caixote de óleo, apodrecido, entre desperdícios
Que aqueceram e afagaram seu corpo tenro.
Os faróis velhos incendiaram o nevoeiro espesso
E chamaram os vagabundos daquela noite;
Os anjos cantaram nas peças enrouquecidas do klaxon
E os cavalos do velho motor cansado encheram de calor
Aquele recanto humano,
Onde todos os homens de boa vontade
Não ajoelhavam perante o Dollar.
Os vadios, os vagabundos, os guarda-nocturnos,
Motoristas e guarda-freios dos eléctricos
Atraídos pela luz, pelos cânticos e pelo calor divino
Que irradiava daquela garagem,
Foram todos em debandada para lá.
E prostraram-se diante do Filho de Deus,
Diante da Criança Divina
Igual - no corpo - às pobres, magras, sujas,
Mal vestidas, esquálidas, crianças humanas.
Prostraram-se e choraram
E chorou e rezou até
Aquele motorista que odiava Deus!
E três fugitivos das nações ocupadas pela liberdade alheia
Vieram - evadidos dos campos de concentração
Oferecer suas feridas, suas fomes, seu sangue inocente.
As buzinas dos carros todos
Tocaram a alegria daquela noite sem par...
Só o menino chorou para dentro
Porque sabia que o prenderiam outra vez,
Trinta e três anos depois,
Por sedicioso, como revoltado contra a Lei,
Aqui, por não ser do Pacto do Atlântico,
Alem, por não estar na Linha Geral do Partido.
Mas os humildes de todo o mundo
Viram e compreenderam
A mensagem daquela noite sem par.
Poema de: Amândio César (1921-1987)